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Lucia Murat: «Não nos preocupamos em fazer uma geografia da viagem mas sim em retratar a emoção da viagem» 


— Entrevista com Lucia Murat, diretora de «Uma longa viagem» (2011), Gabrielle Dupont de © Puntolatino, Ginebra 21.11.12. —


A famosa cineasta brasileira Lucia Murat foi convidada para a 14? edição do festival Filmar en America Latina. Ela veio apresentar o seu filme Uma longa viagem e o filme da sua filha, Julia Murat, Historias que só existem quando lembradas, que ela produziu.


Uma longa viagem conta a historia da Lucia Murat e dos seus dois irmãos durante os anos 1960 e 1970. Se o filme conta a historia de uma família, ele é representativo de uma época. Por ser engajada na luta contra a ditadura militar que o Brasil esta sofrendo, a jovem Lucia é torturada e fica presa por quase quatro anos. Enquanto isso, o seu irmão hippie Heitor, começa em Londres a sua longa viagem que vai durar 9 anos. Através das lindas cartas que Heitor manda para a sua família, seguimos seus passos pelo mundo e seus pensamentos. O espectador viaja também entre o passado e o presente, entre cenas de entrevistas atuais do Heitor contando a sua viagem e cenas nas quais o Heitor, jovem, interpretado pelo ator Caio Blat, está em plena viagem escrevendo para sua família.



— Para retratar essa época e essa viagem, você não apenas usou entrevistas com o Heitor mas resolveu pedir para o ator Caio Blat interpretar o seu irmão. A técnica de narração do filme é muito interessante e original. O Caio Blat interpreta as cartas enquanto atrás dele são projetadas varias imagens e filmes que ilustram a sua viagem. Como surgiu essa idéia?

— Houve opção por fazer um tipo de material muito mais emotivo em relação a época do que descritivo. Eu sempre falei que eu não queria fazer um Discovery Chanel mas que eu queria reviver a emoção da época, os sentimentos. Então a gente trabalhou muito com material pessoal, com super 8, com fotos e musica. Isso tudo foi um trabalho de meses de pesquisa e de levantamento. Teve situações incríveis, eu me lembro que o Leu, que fez a pesquisa, me disse que tinha descoberto vídeos de arte fantásticas de Londres, eu falei « mas o que que a gente vai fazer com isso ? », e finalmente virou uma das cenas que eu mais gosto do filme. A vídeo Arte é do Chacal (poeta brasileiro) brincando com um disco num parque em Londres. E a gente projetou aquilo e fez o ator brincar em cima. Então ficou muito legal, é um momento interessantíssimo porque você sente muito forte Londres nos anos 1960 ali. Então foi um filme de descoberta, a gente decidiu desde do inicio que a gente ia usar projeções, mas como usar-las ? Isso tudo foi um processo muito criativo. Por exemplo, teve uma hora que queríamos projetar na parede, mas como a gente vai projetar ? Na biblioteca ? Então pensamos em fazer uma lombada de livros brancos pra poder ter algum reflexo . Eu me lembro que uma vez a gente estava projetando umas fotos numa piscina e ai por acaso o rapaz da arte estava atrás com um pano branco, e de repente a gente viu que o reflexo daquela foto na água sobre o pano branco dava um reflexo no rosto dele que era incrível. A gente acabou usando isso. Buscamos situações que refletissem emocionalmente o que estava sendo dito ou vivido, muito mais do que um Discovery Chanel, muito mais do que uma serie de fotos descritivas. Não nos preocupamos em fazer uma geografia da viagem mas sim em retratar a emoção da viagem.






— Uma longa viagem é um filme muito pessoal. Como foi fazer esse filme pra você?


— Na verdade a minha mãe tinha mandado datilografar as cartas do Heitor. Ela queria que eu fizesse alguma coisa com elas. Mas na época era tudo muito confuso, eu estava saindo da cadeia. Foi quando eu comecei as entrevistas com Heitor que eu voltei a ler as suas cartas, e ai eu vi que não somente elas são muito representativas de uma época mas elas são literariamente muito bonitas. E elas são muito interessantes porque fazem esse arco dramático do menino muito ingênuo que chega em Londres ate a parte final que é muito angustiada, que são também as cartas mais bonitas mas que são muito angustiadas e algumas bem enlouquecidas. Mas em nenhum momento a gente mentiu, houve uma seleção entre as cartas mas em nenhum momento colocamos uma palavra a mais.




— O trailer do seu filme « Quase dois irmãos » começa com essa frase « Temos todos duas vidas, uma a que sonhamos, outra a que vivemos ». E correto dizer que durante a sua viagem, o Heitor viveu a vida que sonhou?
— Eu acho que sim. Digamos que foi cobrado um preço muito caro por isso, não é ? Mas acho que sim. E uma frase do Fernando Pessoa que a gente usa falando das utopias da minha geração.



— A idéia de Uma longa viagem nasceu depois do falecimento do seu irmão Miguel. Você dedicou o filme a ele. Mas a personagem principal é o seu outro irmão, o Heitor e a sua longa viagem. O que ele achou do filme ? Gostou?

— Ele gostou do filme, foi importante pra ele. Foi uma época da vida dele que ele fez uma viagem muito louca e muito particular mas que tinha sido esquecida. As vezes as pessoas o param na rua e falam « parabéns, incrível a sua vida » então foi muito bom pra ele. E o Caio teve uma participação incrível como ator, porque eu dei pra ele o roteiro com as cartas selecionadas, mas acho que ele tomou duas decisões que foram fundamentais para que conseguisse interpretar tão bem o Heitor : ele me pediu as cartas na integra, e também me pediu para conhecer o Heitor. Então ele ficou indo na casa do Heitor e conversou muito com ele.



— As questões políticas são muito importantes no seus filmes mas também na sua vida. Em Uma longa viagem , você mostra uma juventude politizada, lutando pela liberdade. O que você acha da juventude de hoje, muitas vezes considerada alienada e individualista?

— Existe uma fantasia muito grande em relação aos anos 1960, mas pra mim é uma grande felicidade que a minha filha não teve que viver a ditadura. E evidente que hoje não tem aquela radicalização que a gente viveu, você não tem contra ao que se opor tão claramente. Estou terminando um filme agora (A memória que me contam) que trata um pouco da relação entre pais e filhos, das diferenças entre gerações. Eu acho que nossos filhos são pessoas que estão tentando fazer coisas. Coisas diferentes obviamente. Não tem esse aspecto romântico e aventureiro que foram nossas vidas ao visto de hoje, mas que nos custou caro. Hoje o mundo é outro, esse mundo neoliberal é fogo mas acho que tem muita gente tentando fazer um trabalho. A minha filha com esse filme (Historias que só existem quando lembradas) faz um trabalho que representa as preocupações da geração dela.




— O seu filme é muito diferente do filme da sua filha. Uma longa viagem é cheio de musica, movimento, energia enquanto Historias que só existem quando lembradas é muito lento, silencioso ...

— A questão da lentidão, eu acho que faz parte da geração mesmo. E uma geração nova que vem fazendo um tipo de cinema que é um cinema muito influenciado pelo cinema oriental, muito reflexivo, muito em oposição a aquilo com que foram criados como a televisão, os clipes, os blockbusters. E tem uma coisa nesse cinema de ir ao interior, onde tem um outro ritmo, de buscar essa outra realidade.



— Você passou por uma experiência muito difícil. Você foi torturada e presa durantes três anos e meio durante a ditadura. O seu primeiro filme « Que bom te ver viva » trata desse período. Suponho que fazer filmes tratando desse assunto já é uma forma de denunciar essas violências. Mas eu queria saber o que você espere, pessoalmente, da Comissão da Verdade?

— Meu ultimo filme Memória que me contam fala um pouco sobre isso. Acho que nunca houve a intenção de denunciar exatamente nos meus filmes. Acho que foi uma necessidade minha de falar, por ter vivido uma experiência tão dura, mais do que qualquer outra coisa,. E impossível essa experiência não ficar presente na tua vida. Então foi muito mais uma necessidade minha de falar do que uma proposta de denunciar. O Brasil é o ultimo país da America Latina a fazer esse trabalho, todos os outros países já denunciaram, tiveram sua Comissão da Verdade, inclusive muitos já julgaram. Mas a gente nunca fez nada. Acho que isso tem a ver com a cultura brasileira que é uma cultura de conciliação. Pelo menos do ponto de vista de investigação, eu espero que a Comissão da Verdade avance. Tem surgido algumas denuncias novas, particularmente em relação aos desaparecidos políticos. Alguns guardas e policiais fizeram declarações que são absolutamente espantosas, terríveis. Foi muito importante a criação da Comissão e espero que, fundamentalmente, se conheça o que realmente aconteceu.




— O cinema brasileiro é o convidado de honra dessa 14? edição do festival. Alem de filmes recentes são apresentados os considerados «clássicos» do cinema brasileiro como Macunaíma e Antonio das Mortes. Segundo você, qual é O filme brasileiro, O grande «clássico» que tem que ser visto?

— Deus e o Diabo na Terra do Sol ! E difícil responder, você tem um grande filme da época do cinema mudo que é o Limite, mas eu acho que do Cinema Novo é Deus e o diabo na terra do sol. Eu acho que é o mais impactante. E evidente que tem muito a ver com a tua adolescência. E muito difícil um filme ser tão impactante quanto aquilo que você viu na sua adolescência. Na minha adolescência foi o Deus e o Diabo na Terra do Sol. Foi um dos primeiros filmes que falava de uma outra realidade do Brasil. Nessa época a gente tinha basicamente uma tradição de cinema que era a chanchada, a comedia, o musical ou então um outro filme mais sério feito em São Paulo, a historia da Vera Cruz … e de repente você tem um filme muito impactante que fala da realidade social brasileira com uma estética muito nova. Os cineastas do Cinema Novo se aproveitaram do fato de não ter muito dinheiro, trabalhavam câmera na mão, se aproveitaram do contraste da luz do Nordeste para fazer uma fotografia extremamente contrastada, e a forma de interpretar também era muito diferente. Então acho que tudo isso foi muito impactante na época. Mas eu acho que é um filme que não envelheceu, acho que é um filme muito bom ate hoje.




— O que você acha dessa edição do festival Filmar?

— Achei a programação muito boa, com muito filmes interessantes. Acho ótimo esse festival, acho que tem um retrato da America Latina excelente e o publico é bom.



Filmografia da Lucia Murat
Que Bom Te Ver Viva (1989)
Doces Poderes (1997)
Brava Gente Brasileira (2000)
Quase Dois Irmãos (2004)
Olhar Estrangeiro (2005)
Maré, nossa historia de amor (2007)
Uma longa viagem (2011)
A memória que me contam (2012)


Gabrielle Dupont de © PuntoLatino, Ginebra 21.11.12.


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